quinta-feira, 27 de dezembro de 2007

A história...


O seu problema era a cabeça e essa enorme vontade de vaguear, no tempo, no espaço, no mundo, no seu sofá, ao som de uma qualquer canção de esperança.
Envolto num turbilhão de ideias, projectos, trabalhos, canseiras, pessoas, cheiros, sons, não saía da sua sala, temendo o vazio do mundo lá fora.
Não saía, nem precisava de o fazer, nunca estava sozinho, o pensamento era o seu melhor amigo e não o queria partilhar com ninguém … nem com ela.
Só descobre os mistérios da mente, quem não tem medo de a enfrentar e ele, não o tinha.
Eram dias e noites a viver aventuras na sua sala verde. E comia e bebia e sonhava e pensava e dormia, sem nunca sair do mesmo lugar. Por vezes olhava da janela, o mundo lá fora e pensava: “que tontos são... não têm nada!”.
E ele, que tinha?
Tinha-a ao anoitecer, sentada na sua sala verde, ao seu lado, a ver telenovela e, acima de tudo, tinha a sua cabeça, onde percorria o mundo…. Onde vivia.
O seu problema era a cabeça. E para quem é que o problema não é, a cabeça?
Ele, ao menos, sabia-o.
E é dele que falamos, das suas aventuras, desventuras, dos seus segredos e ilusões, enfim... Da sua cabeça, o seu maior problema.
A SEGUNDA-FEIRA era o seu melhor dia da semana, era o dia da esperança.
Tudo podia acontecer. O tempo podia mudar. Ela podia não voltar, podia ficar mais bela, menos chata, mais meiga, talvez como há 30 anos atrás. “Afinal, porque é que um homem casa?” Perguntava muitas vezes a si próprio.
Bom, mas a segunda-feira não era o dia de pensar na vida, pelo menos na sua vida presente. Era o dia dos planos, das grandes viagens. Acima de tudo, era o dia em que ficava só.
Lembrava-se dos seus tempos de criança, e da sua preocupação em saber qual o rumo que seguiria quando “fosse grande”. Tinha pensado em ser polícia ou bombeiro, talvez por causa das fardas, ou quem sabe, pela admiração que a Clara tinha por elas.
A Clara! Cada vez que pensava nela ainda sentia um aperto, uma saudade dos tempos em que ainda era menino e a olhava com respeito e, mais tarde, quando o seu corpo lhe pregava partidas, ao vê-la passar, com figura de mulher e perfume de pecado.
Tinham-lhe dito há pouco tempo que a Clara estava gorda, feia e velha. “Mas não é como estamos, todos?”.
Agora, “grande”, com a farda bafienta no armário, já não tinha profissão, por isso às segundas-feiras, continuava a viajar na sua sala, para outros mundos, lugares belos, distantes, infinitos, irreais, verdes.
Além da cabeça, o seu problema era também a cor verde.
Verde, cor da esperança, do bosque, das esmeraldas, quem sabe por ser a cor dos olhos da Clara e das garrafas que tinha aberto para a esquecer e que ainda hoje abria, sabe-se lá porquê!
À noite quando a casa mergulhava no silêncio, fechava os olhos, sentia-se livre e voava. Voava nesse seu mundo louco, voava para muito longe, esquecendo-se que estava no seu sofá, na sua sala verde e encerrado na sua própria vida.
Toda a sua existência tinha sido passada a conhecer o mundo real, lugares, pessoas, costumes. Tinha passado tempo demais entre malas, salas de embarque, rotas traçadas, aviões e em lugares misteriosos, civilizados, selvagens e paradisíacos.
Conhecia o planeta inteiro, mas nada o atraía tanto, como o seu mundo interior, tão belo, tão distante, tão diferente. Agora que o descobrira, queria ficar preso nele, desvendá-lo, conquistá-lo, nem que para isso tivesse que abrir mais garrafas.

Afinal o problema era mesmo a sua cabeça... mais do que a cor VERDE.

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