terça-feira, 31 de julho de 2007

O Café da Aroeira... IX

ELE
- Não se passa nada aqui? Há pessoa preocupadas. – pergunto ao empregado do Café
- Que querem? Uma orgia? A entrada de uma prostituta? todas saem e ficam só eles dois? sangue?
- São pessoas que não saboreiam a construção.... Detesto o “Correio da Manhã” mas tolero quem os lê. Têm razão de existir, mas não me peçam para partilhar essa leitura.
- Não percebo onde quer chegar.
- Eu explico. Que diz a placa que está à porta deste Café? “Porque escrever liberta”. É o mote. Significa que os leitores do Correio da Manhã não se devem sentir confortáveis neste espaço.
- E como empregado digo: da mesma forma que a porta está aberta para entrarem, está aberta para saírem. Não obriguem os que estão cá a lerem o “Correio da Manhã”...
- Sublime. Mas o que é que se passa no andar de cima?
- No andar de cima temos um restaurante com vista para o Rio. Está lá um casal a jantar.
- Que estão a beber?
- Duas Quintas, branco.
- Nada mal, melhor seria o Madrigal, mas não está mal. Mais um jogo de sedução?

“E vós que hoje noivais
adivinhai estes instintos
do grupo concertado por apelos
que da natureza vós mesmo
genuinamente recebeis
e o vosso digno destino encoraja!
Bocas unidas braços nus
tacteados seios extenuante sexo
fazei com que a vossa noite de prazer
justamente se cumpra!
Estas coisas ensina-lhes
oh dia de pompa de cio!
Inspira-lhes aqueles pensamentos
que deve provocar a proeza da carne
inevitável natural
como mijar quando o desejo aperta!
Faz com que se beijem se unam
com espontâneo entendimento se ajustem
e deixa que a noite vindo
aquele uso lhes ensine
que para os jovens é o gosto de abusar.
Deixa-os repetir o enlace
e o prazer derramar derramar
até que mais não possam!
im deixa a noite
seu reiterado unir-se no escuro vigiar
até que o pensamento de encandecido
aflija o desgaste
e sobre feridas formas venha o sonho
mastigar os seus nomes e abraçados
com seu amor sonhem ainda
e alguma coisa daí resulte!
E se acordarem
ensina-os a recomeçar
porque o tempo agora é todos deles.
Com júbilo com a angústia do sono enche
suas carnes em escaldante comunhão misturadas
enquanto exaustas as estrelas
no oriente o céu descoram e estremecem
onde a luz a noite desfaz
e com clamor de alegria
e adolescente rumor de vida
o tépido novo dia começa.”
(Fernando Pessoa)

segunda-feira, 30 de julho de 2007

O Café da Aroeira... VIII

ELA (numa fase pouco produtiva)
De novo na sua Lisboa!
“A viagem, o regresso... são partes do mesmo percurso. O mais interessante é sempre o que ainda falta percorrer.” – li em algum lugar.
Saio do avião que invariavelmente fica a quilómetros do edifício principal e sou obrigada a desempenhar o papel de sardinha em lata durante alguns minutos. Cumpridas as formalidades e a recolha sempre lenta da bagagem, dirijo-me apressada para a rampa das chegadas.
Sinto sempre um frio na barriga quando atravesso esta porta que se abre magicamente à minha passagem.
À minha frente, uma centena de pescoços esticados a olhar na minha direcção. Esboço um sorriso, encolho a barriga, estico o peito, levanto a cabeça e avanço triunfante, é assim que se devem sentir as Misses Praia. Trinta segundos de olhares em mim. E se desta vez um desses olhares fosse realmente para mim?. Varri, como sempre, o meu olhar pela multidão expectante e nada me foi familiar, mais uma vez. De mala na mão, fiz o percurso habitual, directa às partidas, para escapar às filas e aos taxistas maldispostos quando descobrem que sou portuguesa da Silva.
Entrei num táxi de onde saiu um casal com ar de lua-de-mel que tinha a felicidade estampada no rosto. Como são diferentes as partidas e as chegadas!
- Café Aroeira por favor – pedi decidida.
Nem acreditei no que tinha dito, em vez de ir para casa, desfazer a mala, organizar-me...
- Café Aroeira? Respondeu o taxista.
- Sim! Na Aroeira, para os lados da Fonte da Telha.
- Sim eu sei perfeitamente onde é o café Aroeira, acabei de passar por lá – informou o taxista – mas olhe que aquilo por lá está complicado.
- Complicado? No Café Aroeira? Perguntei incrédula.
- Uma multidão, eu até abrandei e perguntei o que se passava porque podia ser um incêndio, ou alguém se ter sentido mal, um “anónimo” respondeu-me que aquilo por lá, hoje não estava para poesias, estava um pessoal irritado à porta e acho que não os queriam deixar entrar.
- Que estranho aquele é um lugar tão pacato.
Intrigada encostei-me e olhei pela janela em busca de um sentido. Um duplo sentido, para aquela confusão e para o impulso que me levara a seguir aquele destino. Tinha saudades, não sabia de quê, seria do café? Tive pena de não ter bebido o meu Nicola à chegada, assim o premonitório pacote de açúcar ter-me-ia dito o que poderia encontrar. Suspirei, pensei se tu estarias lá, olho para o lado e vejo um ramo de 2 antúrios vermelhos esquecidos no banco.
- Estão aqui umas flores – informei surpreendida.
- Ahhh foram aqueles moços que larguei lá no aeroporto, iam para as Maldivas, acho que não lhes vai fazer falta hehe – respondeu o homem dando uma gargalhada – olhe fique com elas.
Peguei nos 2 antúrios cuidadosamente, eram lindos, toquei-lhes ao de leve e admirei a sua cor intensa o seu aspecto resistente e delicado, uma verdadeira maravilha da natureza. Antúrio, sem dúvida alguma, a minha flor preferida. Seria um sinal? De quê?
Revi mentalmente o que iria fazer ao Café com um ramo de antúrios e uma mala na mão. Pareceria estranho. Daria a desculpa do livro, mas quem se preocupa com um livro daqueles? Na realidade porque é que morando em Lisboa e vindo de fora eu faria escala no Café da Aroeira?
- Chegámos, parece que as coisas acalmaram – disse o taxista.
Saí do táxi com as mãos ocupadas e com o coração a bater mais forte. Caminho em direcção à porta e percebo um grande reboliço lá dentro, vejo sair o Chico pela porta (o Buarque!) seguido imediatamente por um homem que caminha desgovernado na minha direcção envolto numa capa comprida. Sem me ver, esbarra comigo e algo cai ao chão. Apressadamente e sem me pedir desculpa apanha um catálogo de capa preta e segue o seu caminho. Mas era Leporello o criado de D. Giovanni! Estarei a sonhar? Cada vez percebo menos!
Entro no café onde dois grupos de pessoas olham para... para... ti?
Sento-me incrédula, pouso os meus antúrios vermelhos e vejo a cereja em cima do bolo, desta cena teatral, neste caso em cima da mesa. Tu, do alto da tua mesa discursavas assertivamente sobre qualquer coisa que não entendi. Falavas em metas, trajectórias, prazer, egoísmo. Parecias zangado mas o silêncio à tua volta era total.
Não consegui tirar os olhos de ti, eras um verdadeiro líder, um vencedor, argumentavas e as pessoas olhavam-te com respeito, até que dispersaram.
Quando desceste da mesa com um ar visivelmente satisfeito, os nossos olhos encontraram-se. Eu não consegui fugir com os meus e o meu pensamento seguia a mil, adivinhando o próximo passo. Brindaste-me com um belo sorriso e insististe no olhar. Apeteceu-me levantar e dizer... dizer... o quê? O que se diz numa situação destas?
Uma mulher toca-me de repente no ombro.
- Teka, ó filha, tu és a Teka não és? Ó filha ainda bem que te encontro. Posso sentar-me aqui contigo? – disse a mulher que estava visivelmente entusiasmada e foi-se sentando.
Não queria acreditar.
- Ó filha temos muito que conversar, o meu nome é Estrelita. Tu vê lá o que me fazes à vida, à tua e à minha. Gostas de caracóis, gostas? Vamos aqui comer uma pratada e conversar de mulher para mulher, tá bem filha? Há coisas que tu tens que saber, para não fazer um disparate – gritava ela ao meu ouvido.
Não queria acreditar, de novo.
Quem é esta? Também há caracóis no Café da Aroeira? Estou aqui a comer caracóis com esta mulher louca?
Procurei-te pelo café, quis encontrar os teus olhos, quis que saltasses para cima da minha mesa e expulsasses aquela mulher que insistia em deitar as cascas dos caracóis vazias, de novo para o prato e falava sem parar coisas que eu não entendia.
Vi que te tinhas virado para o empregado e conversavam.
Nada a fazer... agora é esperar que ela se canse!
Logo vi... noites de Lua Cheia!


ELE
Porque não fala com os outros? Pergunta-me o empregado do Rick´s Café Aroeira.
- Falo contigo, com o carteiro, com o maestro, enfim falo com todos! – respondi sorrindo.
Percebi perfeitamente a pergunta, mas que responder? Porque será que as pessoas querem respostas rápidas? e não “alimentam a dúvida” como catalisador de novas ideias, novas vivências? e querem conclusões, e não estudam, e não analisam, e nem sequer têm tempo para sentir, e...
Necessito ganhar tempo para articular a resposta. Como explicar que não posso ter um discurso directo com pessoas que existem sem que as respostas sejam das próprias?
- Em muitos diálogos... as palavras são dispensáveis – arrisquei.
- É um bom argumento... E porque será que os “outros” não estão aqui no Café?
- Não é verdade, estão todos cá. Olha para as mesas. Naquele canto a “Estrelita” na outra mesa uma “evidência” mesmo ao lado do “pairando”. E há muitos mais: “anónimos”, “sinónimos”, muita “curiosidade” e muitos mais, inclusive “fantasmas”...
- Fantasmas? fantasmas verdadeiros?
- Sim, da casa encarnada...
“Vejo meus fantasmas
Tomando formas, diversas formas.
Brincam, dançam, riem de mim,
Desafiam meus medos.
Eles sabem todos os meus segredos,
Acendem as luzes dos meus becos.
E o que deixa minha consciência mais pasma
E não saber, onde começa o homem,
E onde termina o fantasma.
(Tonho França)

- Mas falta uma pessoa.
- O fantasma? – perguntei.
- Estava a pensar no “2 em 1”, mas nem sei se ele não será mesmo um fantasma...
- O 2 em1 é diferente. Não te esqueças que ficamos a meio de uma conversa. Quem será esse personagem que se chama 2em1? Muito assertivo, muito prático... até parece um engenheiro.... Se o “evidência” perguntou “quando é que o correio chegava”... pode ser que seja um sinal. Será que ele trabalha nos Correios?
- Senhor carteiro! Conhece lá nos Correios um engenheiro chamado “2 em 1”?
- Com esse nome não, mas lá há muitos e para todos os gostos...
- Ficamos com a dúvida. Pode ser que ele apareça um dia. Espero que traga uma garrafa de vinho ainda melhor que as suas muito boas propostas... por exemplo... “Barca Velha 99”
- Barca Velha? Que tipo de comida para este vinho? Carne, provavelmente?
- Caro amigo, estás a ficar conservador demais para o meu gosto... és um convencional: branco para peixe, tinto para carne... Com Barca Velha devemos comer simplesmente... queijo, presunto ou algo semelhante, porque, neste caso, o importante... é o vinho.
- E a mota, e a mota? Porque prefere a mota ao cavalo do Luky Luke?
- Lembras-te do filme “Diário de uma Viagem” com o Che atravessando a América do Sul? Achas que teria o mesmo encanto se tivessem ido de cavalo...
- Parece-me que os seus exemplos são muito cinematográficos... o senhor vive? Existe? Ou serão somente imagens?
- Não existe fronteira entre o real e o imaginário. Se alguém anda à procura de respostas exactas e rápidas... que vá a uma loja de “pronto a vestir”. Prefiro “fatos à medida”.
- Vai saborear a “lua cheia”? Pergunta, com ternura, o empregado do Café.
- Há quem diga que é a “lua” que “menos gosta”.

domingo, 29 de julho de 2007

O Café Aroeira... VII

ELE
Um ruído vindo do exterior do Café interrompeu a conversa sobre a eventual identidade do “Champô”.
- Temos uma manifestação à porta – disse um “anónimo” que entrou no Café.
- E depois? – pergunta o empregado. Aqui na Aroeira somos democratas. Podem manifestar-se à vontade.
- Mas a manifestação é contra este Café.
O empregado ficou perturbado.
- O quê? Que mal fizemos? O diálogo é sempre uma boa solução. As “palavras ainda não estão gastas”. Não será possível declamar poesia para os manifestantes?
- “Isto” não vai com poesia – afirma categórico um “anónimo” manifestante que entrou no café.
- Que querem? Pergunta o empregado
- Várias coisas. Aqui está o nosso caderno reivindicativo:

a) que este antó(nimo) se identifique! – queremos saber quem ele é!
b) que ele fale directamente com a Teka, enfim que façam o que entenderem, se toquem, se beijem, dancem, mas que façam!

Não sabia onde me haveria de meter... mas em silêncio não ficarei. Sei que a “ausência de uma decisão é uma decisão”. Levantei-me e disse:
- Quero dizer...
Fui interrompido por uma contramanifestação:
- “Não queremos que vocês se conheçam”! – gritavam outros manifestantes. O nosso caderno reivindicativo és:
a) não queremos saber quem tu és

b) Tu e a Teka devem manter a distância. Sublimem o vosso desejo. Mantenham a nossa expectativa, necessitamos disso para viver!.
Momento superior, pensei. A contradição, a dúvida, referida várias vezes pela Teka, estava na rua.
Sorri.
Melhor ainda: “a poesia está na rua” (cartaz da Viera da Silva a propósito do 25 de Abril).
- Posso falar? - perguntei levantando a voz.
Fez-se silêncio.
Pensei que estava nos anos setenta. Saltei para cima de uma mesa e discursei:
- Não pactuo com posições incorrectas, não aceito soluções simples e superficiais. Querem que eu e a Teka falemos? Porquê? Não gostam da dúvida? Não gostam do desejo? Confundem o trajecto com a meta? Se é isso que querem de mim... não contem comigo.
- E vocês – continuei olhando para a outra manifestação – querem que não nos falemos? Porquê? Porque o vosso sentimento egoísta faz com que só pensem em vocês. E nós? Não temos direito ao prazer?
Fez-se um enorme silêncio. Percebi que os meus argumentos estavam a desmobilizar as manifestações. Os manifestantes abandonaram a sala.
- Para quem se dizia tímido... portou-se muito bem – disse-me o empregado do Café
Ainda disse:
- Maestro, por favor. Gostava de ouvir “Let´s Do It, Lett´s Fall in Love” – Cole Porter

Ao descer da mesa reparei que estavas no teu cantinho preferido.
Desta vez não baixei os olhos. Sorri e senti um brilho nos teus olhos.
Na tua mesa... antúrios vermelhos.


sábado, 28 de julho de 2007

Registos muito pessoais...







"O Sol que luta por ser livre"

O Café Aroeira... VI

ELE (num pico de criatividade)
O empregado do Café Rick´s Aroeira Café olha atentamente para mim, como se quisesse descobrir algo e pergunta de chofre:
- Porque não se levanta e vai falar com a nossa cliente que costuma estar sentada naquela mesa?
- Não percebo. Acha que é isso que eu desejo?
- Sim, E penso que é um sentimento comum aos dois.
- E se eu lhe disser que sou tímido, acredita?
- Claro que não, mas pode continuar a dizer e principalmente poderá continuar a pensar.
- Mas sou! E vou provar-lhe: não sei o que dizer, nem como dizer, nada. E se lá estivesse, provavelmente coraria... Escrever é muito mais simples
- Já o “champô” dizia isso...
- Dois em um, amaciador ou outra coisa qualquer é um assunto encerrado!
Senta-se o maestro na nossa mesa e afirma:
- Porque não tenta um tango. A minha orquestra poderá acompanha-lo. Quer um exemplo?
No sabrás, nunca sabrás
Lo que es morir mil veces
De ansiedad
No podrás nunca entender
Lo que es amar y aloquecer.
Tus labios que quemas,
Tus ojos que embriagan
Y que torturan mi razón...
Sed que me hace arder
Y que me enciende el pecho de pasión.
Estás clavada en mí,
Te siento latir
Abrasador de mis sienes,
Te adoro quando estás y
Te amo mucho más
cuando estás lejos de mi”

- Serve? – pergunta o maestro. Chama-se “Pasional”
- Não. Não gosto de: “te amo mucho más cuando estás lejos de mi”
- E não quer enviar uma carta – interrompe o carteiro
- Já disse, tal como o Pessoa afirmou para a sua querida Ofélia: “todas as cartas de amor são ridículas”
- Quer um exemplo? – pergunta-me o carteiro. Nas cartas de amor da Soror Mariana ela afirma: “Ignoro por que motivo te escrevo...”
- Mais outra que tem dúvidas – comento
- Temos que encantar uma solução – afirma um estranho que entrou nesse momento no café.
- Quem é você? – perguntamos todos em uníssono
- Ninguém!
- Frei Luís de Sousa? – perguntamos todos quase ao mesmo tempo.
- Não, António Silva vendedor ambulante. Estava a dizer... “ninguém” deixa de comprar os meus produtos. Mas vocês não deixaram que eu acabasse a frase.
- E então, que produtos vende?
- Um pouco de tudo, mas verdadeiramente sou especialista em champôs.
- Todos nos rimos às gargalhadas deixando o vendedor de boca aberta não percebendo a razão de tanto riso.
- Disse algo de errado?
- Não, nada disso, Se é especialista em champôs fale-nos um pouco da fórmula “dois em um”
- Temos duas variante: ou dois produtos diferentes num só... ou um produto com duas características. Temos várias marcas. Querem ver?
- Não! Dissemos todos quase ao mesmo tempo...
- E no nosso caso que será? – pergunto eu
- Para mim, diz o carteiro, preferia duas pessoas .- assim ao menos eram dois clientes... que são os que tenho.
- Na música apostamos na outra versão – Vinícius tem um samba com duas notas...
- Temos que acabar com este mistério. Penso que o “Champô” é um de nós. Provavelmente o Carteiro, Não será você?
- Eu não, mas poderia ser o meu cliente... Pablo Neruda
- Esse não pode ser – afirmei
- Porquê? - perguntaram todos?
- Neruda não escreve assim!
Convencidos perguntaram
- E então quem será?
Todos se viraram para o empregado do Café
- Você?
- Estou sempre aqui próximo dos meus clientes. Não tenho acesso a essas modernices. Ainda trabalho com uma “caixa registadora manual”...
Reparei em vários olhares inquisidores que se viravam para mim...
- Não será você?

“Mestre, só seria como tu se tivesse sido tu.
Que triste seria como tu se tivesse sido tu.
Que triste a grande hora alegre em que primeiro te ouvi!
Depois tudo é cansaço neste mundo subjectivado,
Tudo é esforço neste mundo onde se querem coisas,
Tudo é mentira neste mundo onde se pensam coisas,
Tudo é outra coisa neste mundo onde tudo se sente.
Depois, tenho sido como um mendigo deixado ao relento
Pela indiferença de toda a vila.
Depois, tenho sido como as ervas arrancadas,
Deixadas aos molhos em alinhamentos sem sentido.
Depois, tenho sido eu, sim eu, por minha desgraça,
E eu por minha desgraça, não sou eu nem outro nem ninguém.
(Álvaro de Campos)

O Café Aroeira... V

ELE
- Aqui há uma certa dificuldade em distinguir o sonho da realidade - afirmo para o empregado do café Rick´s Aroeira Café
- É um problema comum a muitos dos meus Clientes. Haverá interesse em os distinguir? E porque esta questão agora neste momento?
- Será que dancei mesmo? o Chico esteve aqui a cantar? haverá uma orquestra? e o Café, é fruto da imaginação?
- Saboreie, saboreie a vida. Onde é que eu terei lido isto?
- Provavelmente num pacote de açúcar, DELTA, claro!
- Regressando à sua questão, caro cliente, porquê preocupado em separar a realidade do imaginário?
- Estive atento a um novo cliente deste café, que se meteu comigo.
- É um dos lemas deste Café. A criatividade ao poder e liberdade com responsabilidade - outra frase feita. Esta não devo ter lido num pacote de açúcar...
- Estava a dizer que se tinham metido comigo. E como respondo às provocações... não deixo de continuara a falar entre o real e virtual. Ele afirmou que eu me refugio no virtual e que fujo da realidade. (disse "não fugas, mas penso que provavelmente quereria dizer: "não fujas"...)
- E então?
- Reconheço que ele deve ter alguma razão, mas tenho que me defender.
- Defender de quê? e porquê? Será que ele afirmou algo que não seja verdade?
- A verdade é como os champô´s... "dois em um"...
- Ah, Ah, Ah. Essa é que verdadeiramente não é uma frase com açúcar... e quem será o "amaciador"?
- Essa é uma boa piada. A "criatividade é uma semente que deve ser regada".
- Mas há vários sinais interessantes...a fuga? o virtual, o primeiro beijo, o romance a duas mãos (gostei)... e porque será que refere uma mota?
- Prefere uma mota ou o cavalo do Luky Luke?
- O Luky Luke não tem lá muita piada...no fim das histórias ele fica sempre sozinho com o cavalo... não me seduz lá muito. A mota poderá ser que seja um pouco diferente... cavalo alado com destino às estrelas... Pode ser um bom princípio de uma nova história. Maestro, por favor.
- Chamou-me? - pergunta o maestro aproximando-se da nossa mesa.
- Como foi possível a sua banda, que é de Jazz, ter acompanhado o Chico Buarque?
- Tenho imenso prazer em acompanhar o Chico Buarque tal como o Caetano Veloso.
- De facto "de longe somos todos normais"...
- A nossa orquestra transpira "música por todos os poros". É um prazer tocar neste Café.
- E uma ária de uma ópera? Também se pode tocar aqui?
- Tudo é possível neste Café. Alguma ópera em especial?
- A Flauta Mágica de Mozart.

- Fiquei intrigado – comenta o empregado do Café. Se ele se meteu consigo com a ária “Catálogo” do D. Giovanni porque pediu para tocar a “Flauta Mágica”?
- Não sabe a história desta ópera?. Há uma princesa sequestrada, há um príncipe e um caçador de pássaros que tomam a missão de a libertar. Depois de vários episódios mais ou menos atribulados com flautas e carrilhões mágicos tudo acaba em bem “casaram e foram felizes”. Apetece-me histórias com um fim feliz.
- Não me parece seu. Parece uma história tipo “cor de rosa” – diz o empregado perfeitamente admirado. Afinal não conhecia o seu cliente.
- Conhece a história do D. Giovanni? É uma desgraça. A música é muito bonita, mas “poupem-me”. Estou cansado de sofrer...
- Surpresa total – diz o empregado. Este Café virou consultório de Psicanalista
- Nada disso... Posso pedir-lhe um Gin Tónico?
- Gordon´s?
- Claro, isso nem se pergunta.
Com este pedido momentaneamente ganhei “espaço” para poder respirar.
A história do Champô “dois em um” tinha-me perturbado. Quem será? Diz que não nos conhece... mas não acredito.
“Só brinca quem sabe” – não foi retirado de um pacote de açúcar... mas poderia ter sido.
- Olá, bom dia –Era o carteiro, sempre simpático.
- Ainda bem que o encontro. Tem que me ajudar.
- Onde se vendem Champôs?
- Não posso acreditar. Este é mesmo um espaço aberto onde não há segredos.
- Não, obrigado. Onde fica o Café “Alfredo”? Só conheço um em Linda a Velha, mas parece-me que não deve ser esse.
- Sabe o Código Postal?
- Claro que não, se soubesse era “meio caminho andado”
- Então nada feito... mas vou tentar averiguar.

Quando for grande vou ser
Quero ser um realejo
Ter um pedaço de terra
Fogo que salta ao braseiro
Dormir no fundo da serra
Quero ser um realejo

Carteiro em bicicleta
Leva recados de amor
Vem o sono com a música
Ao som do realejo”
João Afonso

sexta-feira, 27 de julho de 2007

Sonhos...


Há-de haver algum lugar
No confuso casarão
Onde os sonhos serão reais
E a vida não
No lugar deve existir
Uma espécie de bazar
Onde os sonhos extraviados vão parar
(Chico Buarque)

quinta-feira, 26 de julho de 2007

O Café Aroeira... IV

ELA (finalmente)
Ainda a sonhar, embalada no meu sentir, oiço a campainha da porta. A porta? ou o telefone? Ou outra coisa qualquer? Aqui?
Viro-me e continuo a tentar desesperadamente reconstruir o sonho: pegas na minha mão, olho os teus olhos...
Trimm Trimm de novo a insistente campainha... sim definitivamente é a da porta. Fico irritada.
Logo agora... olhei a beira da cama... nenhum antúrio!
Levanto-me estremunhada, meia descoordenada e vou até à porta.
- Quem é?
- Carteiro
- Por favor deixe o correio na caixa – disse do lado de cá da porta não reconhecendo naquela, a voz do Sr. João – Obrigada.
“Facturas e publicidade” é o que retiro todos os dias da caixa, formulários impessoais, discursos iguais em folhas onde só muda o logótipo e os números astronómicos que se pagam. Papel e papel deitado fora sem sentido, a anunciar produtos e serviços que não queremos e não precisamos. Onde andam as cartas, os sentimentos entre as pessoas? Onde andam as palavras que verdadeiramente interessam?
- Trago uma mensagem.
- Uma mensagem?
- Sim. “Uma mensagem, um pedido, um desejo ou um convite? Um jantar íntimo regado com conversas tranquilas”.
- Desculpe, mas quem é que disse que era?
- Sou o Carteiro... de Neruda!
E eu sou a Branca de Neve, pensei para dentro meia inquieta pelo tempo que estava a perder. Algum louco. “Filha não abras a porta a estranhos”, lembrava-me da minha mãe a dizer.
- Peço desculpa mas agora não posso abrir, qualquer coisa deixe na caixa por favor.
O Carteiro de Neruda à porta, às 8h da manhã, logo hoje em que queria acabar o sonho e voar para longe.
Olhei o relógio. Senti-me ansiosa, estado muito recorrente nas últimas semanas.
Enquanto tomava o meu duche pensei na mensagem, pedido, desejo, convite, um jantar íntimo regado com conversas tranquilas, uma charada? O que quereria dizer, faria parte do sonho? Teria mesmo um carteiro batido à minha porta? “O carteiro toca sempre duas vezes”, mas isso foi em 1981.
Pensei na história, um carteiro que recebe ajuda do poeta Pablo Neruda a fim de conquistar o amor da sua vida. Mário, um homem que sonha através das palavras do seu Mestre, mesmo sem perceber todo o sentido. Um hino à Amizade e ao Amor, estes dois valores imprescindíveis mas por vezes tão ambivalentes. Estaria um carteiro a bater à porta da minha vida? Ou um escritor?
Intrigada completei os meus gestos matinais, olhei para o espelho: “o tempo está a passar”. Franzi o sobrolho, maquinalmente espalhei o creme maravilha que psicologicamente resulta naquelas “marquinhas” que já não se esbatem.
Agora tenho que ir para o futuro.
Rapidamente acabei de fazer a mala, com os olhos procurei o livro. Onde está o livro? Sim, aquele que me ensina a não sofrer com métodos nos quais não acredito, ou não fosse uma Rogeriana convicta. “que se lixe... ah! terá ficado no Café Aroeira?”. Só a simples evocação deste lugar acelerou o meu coração. Lembrei-me dos teus olhos, do teu aceno de cabeça, da tranquilidade que depositavas na tua leitura, do teu olhar nas minhas costas quando sai. Quem és tu?
Lembrei-me também das conversas anónimas sobre o passado e o presente
Fechei tudo, a mala, o gás, a água, a electricidade, o passado.
Chamei o táxi, mas antes parei no “Alfredo” para o meu vício matinal.
Olhei para o pacote de açúcar e não pude deixar de sorrir.
“Um dia ponho a mochila às costas e vou conhecer o mundo.”
“Hoje é o dia”
Pacote de açúcar?
Uma mensagem? Um sinal?
Premonição?

Chego ao lugar mais especial desta minha cidade, onde tudo começa e acaba, enfrento a fila feliz, apesar do tempo de espera e do calor sufocante. Apressada corro por entre culturas e bagagens. Rostos anónimos, com destino marcado. Sonho que te vi? Ou será que te vi? Ainda olho para trás, perdi-te, eras tu? O meu pensamento ficou levemente em ti...
Chegou a hora!
Antes tenho tempo para o meu último ritual de cada vez que viajo: a minha última bica do dia em Portugal, apesar dos 1.20 euros.
Procuro um café, mas não um qualquer, tem que ser Nicola! Procuro a frase, no premonitório pacote de Açúcar...
“Um dia farei de ti a pessoa mais feliz do mundo.”
Não posso deixar de sorrir, de novo.
Entro no avião, respiro fundo, aperto o cinto e...
Deixo-me levar pelas nuvens...

Fui... para a terra dos príncipes e princesas...
ELE
Regresso à leitura do livro.
A viagem, o regresso... são partes do mesmo percurso. O mais interessante é sempre o que ainda falta percorrer.
É bom sentir-te aqui, pois este café... és tu!
O carteiro já cá não está. Para quê um outro mensageiro quando podemos viver “olhos nos olhos”?
O empregado discretamente ausentou-se.
Só agora reparei. Num canto harmonioso do Rick´s Aroeira Café há uma banda de Jazz.
Estou a vê-los, a ouvi-los: identifico um piano, vários instrumentos de sopro, de cordas e uma cantora.
Quem está a cantar?
Ella Fitzgerald? Saraah Vaughan? Billie Holiday? Dinah Washington? Nina Simome? Anita O´Day? Ou será Diana Krall?
Até hoje só me tinha cruzado ao vivo com duas delas.
No entanto, estas e muitas mais, sempre me fizeram companhia.
Estranho não ter ficado admirado com este evento. Sei que há muitos cantinhos deste Café que estão por descobrir.
Em Casablanca, seria normal cruzar-me com uma orquestra, com um pianista, com um cantor.
Pouso novamente o livro, aproximo-me de ti e desejo perguntar-te:
- Danças comigo?
“Valsinha”
“Um dia ele chegou tão diferente do seu jeito de sempre chegar. Olhou-a dum jeito muito mais quente do que sempre costumava olhar
E não maldisse a vida tanto quanto era seu jeito de sempre falar
E nem deixou-a só num canto, pra seu grande espanto convidou-a pra rodar
Então ela se fez bonita como há muito tempo não queria ousar
(...) Depois os dois deram-se os braços como há muito tempo não se usava dar
E cheios de ternura e graça foram para a praça e começaram a se abraçar
E ali dançaram tanta dança que a vizinhança toda despertou
E foi tanta felicidade que toda a cidade enfim se iluminou
(...) E o dia amanheceu
Em paz”
(Chico Buarque e Vinícius)

O Café Aroeira... III

ELE
O empregado do Café da Aroeira, ao reconhecer quem entra, diz:
- Bom dia, sr. Carteiro.
A desilusão encheu todo o meu corpo, todo o meu espaço. Esperava outra notícia, outro mensageiro. Tentando disfarçar o meu desalento arrisquei:
- Ultimamente só distribui facturas e publicidade, senhor carteiro.
- Só tenho dois clientes, e esses recebem mensagens, recados., enfim verdadeiras cartas.
- As cartas de amor são ridículas, diz Pessoa.
- Por falar de poesia... sou o carteiro de Neruda.

“Tu eras também uma pequena folha
que tremia no meu peito.
O vento da vida pôs-te ali.
A princípio não te vi: não soube
que ias comigo,
até que as tuas raízes
atravessaram o meu peito,
se uniram aos fios do meu sangue,
falaram pela minha boca,
floresceram comigo.”
(Pablo Neruda)

- Dois clientes? Mas no filme só havia um...
- Há também uma cliente. Quer que envie para ela alguma mensagem?

“Se cada dia cai, dentro de cada noite,
há um poço
onde a claridade está presa.
há que sentar-se na beira
do poço da sombra
e pescar luz caída”
(Pablo Neruda)

- Uma mensagem, um pedido, um desejo ou um convite? Um jantar íntimo regado com conversas tranquilas.
- Não esquecerei de transmitir. Agora tenho que ir. O meu giro ainda está a meio. Bom dia.

Pedi um café. Reparei na inscrição do pacote de açúcar: “saborear é a melhor coisa do mundo”.
Cada vez gosto mais do Café da Aroeira.

Certeza que há “mais vida para além do Café da Aroeira”.
Fazes bem em saborear: mais prazer, saudade, bem estar e tranquilidade... pensar, e viver, o teu futuro, claro!

Regressei a Lisboa e meti-me num avião.
Esta noite vou dormir num quarto “sobre o mar”.
É o meu desejo! E devemos LUTAR para que os desejos se transformem em realidades...

Já no avião estive atento ao pacote do açúcar. Tentei descobrir qualquer mensagem, qualquer sinal.
Desilusão: somente leio... “Sinagra o açúcar dos Açores”.
Não posso acreditar... uma fábrica! Nem Açores é o meu destino...
Mais uma vez, não desisti. Pesquisei no Google - Sinagra é, também (principalmente?) uma localidade em Cecília (outra ilha).
Ilha cheia de vida, com vulcões, muita cor e... com “cheiro” a África.
“Em silêncio descobri essa cidade no mapa
a toda a velocidade: gota
sombria. Descobri as poeiras que batiam
como peixes no sangue.
A toda a velocidade, em silêncio, no mapa –
como se descobre uma letra
de outra cor no meio das folhas,
estremecendo nos olmos, em silêncio. Gota
sombria num girassol. –
essa letra, essa cidade em silêncio,
batendo como sangue.
Era a minha cidade ao norte do mapa,
numa velocidade chamada
mundo sombrio. Seus peixes estremeciam
como letras no alto das folhas,
poeiras de outra cor: girassol que se descobre
como uma gota no mundo.
Descobri essa cidade, aplainando tábuas
lentas como rosas vigiadas
pelas letras dos espinhos. Era em silêncio
como uma gota
de seiva lenta numa tábua aplainada.”
(Herberto Helder)

Já estou no quarto sobre o mar. O meu desejo foi transformado em realidade...
Neste espaço nesta ilha descubro muitas flores: estrelícias, antúrios, orquídeas, sapatinhos, hortenses - a flor do teu post de 19JUL (aqui chamada de “novelos”).

No hotel não me encheram o quarto de flores, o sofá é azul, não descubro a manta, o chá não é de princesa, não há gestos, mas o que verdadeiramente sinto falta são de... conversas tranquilas.
Resta-me a companhia do silêncio e da música do mar em perfeita sintonia.

Esta noite deixarei a janela aberta.
ELE (sempre)
Poderia ser o Rick´s Café (Casablanca). Neste caso sem Bogart nem Ingrid Bergman nem ninguém! O café estava vazio.
- Play it again, Sam.
Silêncio em toda a sala. Como tudo se transforma. Que se terá passado? Terá uma simples viagem alterado tudo?
- Bom dia!
Uma voz vinda do nada?
Era o carteiro! Reconheceu-me.
- Não consegui transmitir a sua mensagem... Temos um “Processo” complicado.
- “Processo”? Tal como no livro do Kafka? Mas esse foi em Praga e não aqui na Aroeira (Casablanca?)
- Kafka também escreveu uma carta. No caso dele, dirigida ao pai...
- Os carteiros entram em muitas histórias..

“Em cada tarde desta vida que escolhi
Deste tempo feito aqui
Ao momento que estremece
É um carteiro que como um barco em viagem
Se não tem voz de paragem
Navegou, desaparece.
Chegam palavras chegam recados
Chegam saudades que enternecem
Chegam palavras chegam recados
Chegam amigos que não esquecem
Dentro das cartas com as palavras”
(Fernando Tordo)

- Hoje em dia tudo é em “correio azul” – replica o carteiro...

“Manda-me uma carta em Correio Azul
P´ra afastar essas cinco nuvens negras
Relembra-me as regras
Do saber viver
Repõe-me o sentido nos sentidos
Olfactos,
Ouvidos
À vista
De tactos
Do teu paladar.”
(Sérgio Godinho)

segunda-feira, 23 de julho de 2007

Futuro...


Dormi com a minha janela aberta...
Senti o perfume das flores.
Senti o mar.
Senti que vinhas com o vento.
Senti que me tinhas deixado um antúrio na beira da cama.
Quero ir com as estrelas e encontrar-te...
Quero dizer tantas coisas ao teu ouvido...

Hoje deixo de novo a minha janela aberta...

quinta-feira, 19 de julho de 2007

Encontros perfeitos...

Hoje, a tomar o meu café matinal, reparei na inscrição no pacote de açúcar:

“Um dia encho-te o quarto de flores.”

Pensei no quanto gosto de flores, pensei no quanto gosto de conversas tranquilas, pensei no quanto gosto de um jantar íntimo de olho no olho, pensei no quanto gosto de toque, pensei no quanto gosto de ficar no meu sofá branco a partilhar a minha manta. Pensei no meu chá de erva príncipe...
Pensei...

E agora, neste meu futuro...
Vou com o Mundo...


O Café Aroeira... II

ELE (de novo)
"- Por favor entregue-me o livro para poder devolve-lo.
Só após alguns segundos percebi o que se passava. O empregado do Café Aroeira estava ao meu lado.
- Tem toda a razão! De facto o livro não é meu. Tive curiosidade.
- Neste café todos os clientes são curiosos.
- A curiosidade alimenta o desejo. Diz-me o que estás a ler e dir-te-ei quem és!
- O ditado popular não é bem assim. É mais do tipo: “Diz-me com quem andas...”
- E essa sua Cliente não regressará para vir buscar o livro?
- Queria que ela voltasse?
- ...
- A propósito do livro, sabe que temos muitos objectos esquecidos neste café?
- “Perdidos e achados”
- Uma espécie disso.
- Também tem Ideias Perdidas? Encontros Desencontrados? Desejos Recalcados? Sonhos Abandonados?
- Há de tudo mas o que mais me intrigou foi um “Manual de instruções para lidar com o insólito”
- Não percebo...
- Dou vários exemplos: “O que fazer se chegar a casa e a no local da mesma encontrar o homem da sua vida, protesta pela falta do lar querido lar?” Ou “cheguei ao emprego, os meus colegas não me conhecem mas sou aceite como fosse um deles. Quem serei?”
- Interessante. Há mais exemplos?
- Muitos. “Escrevo num blogue, mas as palavras desaparecem” ou “No meu blogue há quem leia o que eu não escrevo”.
- Essas interessam-me. Posso convidar-lhe que se sente à minha mesa?
- Terei muito prazer.
E sentou-se afastando o meu copo, já vazio.
- Diga-me, guardador de histórias insólitas, onde existe um “caminho povoado de sentimentos, emoções, afectividades e partilha”?
Não houve tempo para resposta pois um ruído vindo da porta do café indiciava que alguém estava a entrar."
“Pela flor pelo vento pelo fogo
Pela estrela da noite tão límpida e serena
Pela nácar do tempo pelo cipreste agudo
Pelo amor sem ironia – por tudo
Que atentamente esperamos
Reconheci a tua presença incerta
Tua presença fantástica e liberta.”
Sophia

Salto o presente...

Hoje pensei no lugar sonhado
para a dois ser palmilhado...

Terra mágica, de príncipes e princesas, mercadores e artistas, onde a música inunda o espaço, toca-nos na pele e faz aguçar os sentidos.

Hoje não quero o passado nem o presente...
O futuro é agora, quero deixar-me levar, por asas, para esse lugar onde nós não existimos, onde só eu sonho.

Quero sonhar por essas ruas estreitas, olhar a vida comum, saborear esses odores que chegam até mim, registar cores, sons, sentir hoje, aqui no futuro...

Não vou sentir a tua mão porque, neste lugar, ela nunca esteve na minha.
Não vou sentir o teu abraço porque, neste lugar, ele nunca existiu.
Não sei se vou sentir a tua presença só porque a sonhei em mim.
Não sei se vou olhar rostos felizes e ver-me neles.
Não sei se vou construir uma história... ao som de um saxofone.
Não sei se vou olhar o sol a descer sobre o rio.
Não sei se vou deixar-me ir...
Não sei se vou deixar-me ficar...
Não sei se vou querer voltar...

“A ausência de uma decisão é uma decisão!”
"Não se parte, quando não se quer chegar!"

Vou estar despida de Passado, mal vestida de Presente, para me poder vestir de Futuro.

Hoje pensei no lugar sonhado
agora só por mim palmilhado...

E agora... vou com o vento...

segunda-feira, 16 de julho de 2007

O Café Aroeira...

ELE

"Mesmo ao lado da tua mesa saboreio um livro (Montalbán?). A vossa conversa fez-me interromper momentaneamente a leitura. O que era uma privada e ternurenta troca de impressões entre cúmplices de um percurso transformou-se num espaço público.
Mantive-me discreto e silencioso. Bastava-me ter uma visão antropológica das pessoas, dos gestos, das formas, dos movimentos.
Quem seriam? Que fariam? Como pensam? Que percursos?
A minha curiosidade (sempre) acentuou-se quando reparei que tu respondias a todos, a qualquer pessoa (anónimo ou não) mesmo que não estivesse na vossa “mesa”.
Respondias “olhos nos olhos” afirmando: “Este comentário é mesmo para ti. Regressa sempre”
Como ficar indiferente aos teus “olhos”?”

ELA

(no prelo)

ELE

Concentrado na leitura da viagem de Carvalho, o “detective do Moltalbán" em Cabul, fui interrompido:
- Estamos "no prelo"
- "No prelo"? - perguntei intrigado.
- "No prelo" significa "em fase de conclusão"...
- O "Café da Aroeira" não está aberto 24 horas por dia?

"Café no prelo"?, “Apontamento no prelo"? ou será... "Sentidos no prelo"?
Resolvi não investigar, fico a saborear a dúvida...
Deverei escrever?

“Escrever é procurar corresponder
ainda que não se saiba a quê ou se esse quê existe
A nossa liberdade nasce de uma incerteza radical
E a sua metamorfose é a invenção de um espaço
De correspondências que visam uma atmosfera inviolável

Nunca saberemos mas precisamos de desenhar a forma de um caminho
Que vai até ao extremo do silêncio e reflui para o espaço
Das nossas vidas sonâmbulas e incertas
E que nos abre o peito para uma respiração de estrelas vivas
Embora continuemos a deambular no deserto (...)”
(António Ramos Rosa)

- O "Café da Aroeira" não está aberto 24 horas por dia?
- ...
Provavelmente tudo era ”uma invenção de um espaço”
Regressei à leitura do livro.

ELA
De novo no mesmo café de sempre, na mesma mesa, servida pelo mesmo empregado. A debater o mesmo assunto em que invariavelmente sempre surge o impasse. Trocas cúmplices que mostram sentimentos delicados. Sinto-me mais uma vez a perder a batalha da discussão entre o passado e o presente. Olho à volta em busca de reforço para o meu próximo argumento.
Numa fracção de segundo os meus olhos encontram os teus.
Pego na chávena como que a ganhar tempo. A minha voz, ouço-a a sair: “não se parte quando não se quer chegar”, “Jamais se diz aquilo que fica por dizer”.
Sinto o teu olhar em mim, subtil, curioso, talvez surpreendido com as minhas palavras.
Desisto, ele levanta-se, não estamos zangados, o tempo que nos conhecemos e vivemos não permite rupturas. Despeço-me, apesar de tudo, com um sorriso carinhoso que ainda é código entre os dois.
Fico de novo sozinha, pego de novo na chávena, o café está frio.
Ouso olhar para ti de frente, como que para mudar de assunto, curiosa, pareces alto, cabelo cheio, feições finas, olhos expressivos, tranquilo, discreto, envolto na tua leitura. O teu livro, parece-me que li Montalbán, contrasta com o meu “A Inutilidade do Sofrimento” retirado à pressa de uma dessas prateleiras de auto-ajuda para aprender a atenuar a tristeza. Tens um copo à tua frente, pousas o livro e enquanto levas a mão ao copo, os nossos olhos tocam-se e demoram-se uns segundos que parecem minutos. Atrapalhada, sinto-me notada e surpreendida com o meu coração que bate mais rápido. Intuitivamente inclinamos milimetricamente a cabeça num breve aceno.
És um cavalheiro, desvias o olhar e, tranquilamente retomas a tua leitura. Sabes que não fiquei indiferente. Sinto-me aconchegada e fico pensativa: será que esta mesa não pode também ser a tua?

Ele
“Hesito perante este convite.
A revolução é mais saborosa que a democracia, a descoberta seduz mais que a ocupação... a conquista deve ser vivida.
O Gin Tónico ainda está longe do fim e o livro de Montalbán chama-me
“... esperava um discurso dissuasivo de Carvalho mas o detective limitou-se a arquear as sobrancelhas.
Você também duvida?
- Todos os dias.
- E como o ultrapassa?
- Deixando de duvidar.
- De quanto em quanto tempo?
- Todos os dias.
- Admirável essa tensão destruidora e simultaneamente construtiva.
- Talvez as mesmas dúvidas sejam menos abstractas ou transcendentes que as suas.
- Todas as dúvidas são abstractas e transcendentais porque Deus, que é certeza, nos colocou no cérebro a possibilidade da dúvida.
- “Duvida, meu filho, da tua própria dúvida”, disse Deus ao marquês de Marianao.
- Está a ver. Isso não sabia. E porquê ao marquês de Marianao?
- Sabe-se lá. Lembre-se da história exemplar de Santo Agostinho e do menino que tentava meter o mar num barquinho que tinha feito na areia da praia.
- Excelente exemplo! Vejo que é um bom polemista. Vamos passar uma viagem excelente...”
Olhei em volta no café. Estavam muito menos pessoas.
Bebi um novo gole de Gondon´s .”

ELA
Segui-te o exemplo, só que o meu livro não é tão interessante como parece ser o teu. “O pensamento é prévio à emoção, e esse pensamento é que nos faz sentir bem ou mal”, “não soframos inutilmente! Se controlarmos os nossos pensamentos, controlaremos a nossa vida!”. Sorri, fechei o livro, olhei para ti, continuavas embrenhado, sereno. E sem saber que lias sobre dúvidas, imaginei se esta poderia ser uma frase tua. Achei improvável, quem olha assim... quem toca assim com o olhar...
Reparei no empregado que se dirigia a ti.
Levantei-me, eram horas. Serpenteei por entre as mesas e passei colada à tua, sem me atrever a cruzar o meu olhar com o teu. De relance ouço-te “No prelo?” e saio em direcção ao meu carro.
Da Aroeira a Lisboa penso nas batalhas perdidas, nesse teu olhar inesperado, na tua voz, no efeito que teve em mim, no teu livro e nessa palavra intrigante. Prelo “em fase de conclusão”. Quis que o café da Aroeira estivesse aberto 24 h, quis que nunca acabasses de ler o teu livro...
De noite, como há muitos meses não acontecia, adormeci com um sorriso.
Será que este sentido pode ser apontado?
Prelo... talvez sejas escritor...

ELE
"Regressei à leitura do livro incomodado por não ter interrompido a conversa com o empregado quando senti o teu corpo passando colado à minha mesa.
Deveria ter-me levantado, dar-te as mãos, olhar nos teus olhos, e... que dizer?
Não sei!... provavelmente fiz bem em não ter feito nada.
Não é verdade!
“Não fazer nada” é “fazer algo”!
A ausência de uma decisão é uma decisão!
Há um enorme silêncio na sala.
Reparo que na tua mesa ficou esquecido um livro: “A inutilidade do Sofrimento”.
Não me seduz muito... a história da “formiga a transportar uma folha”... enfim, e o título? perfeitamente discutível!
“O sofrimento também faz crescer, o sofrimento também ajuda a descoberta”. Quem será esta María Jesús Álava Reyes? Terá alguma vez sofrido?
“Um guia prático com exercícios de autocontrolo, reflexões, pautas de comportamento e vários testemunhos que pretende levar as pessoas a questionarem-se e, pouco a pouco, a encontrarem as suas respostas”.
O meu lado perverso diria: parece um “Manual de procedimentos”... tipo: “Como utilizar uma máquina de lavar roupa”.
Continua o livro: “aproveitai o dia, porque o passado já era, e o futuro ainda não chegou”.
Como é possível afirmar “isto”... o futuro está aqui mesmo, estamos sempre a tropeçar nele, cada vez mais o futuro se aproxima do presente... o presente é volátil, simples passagem entre o que fica o que está sempre a chegar...
Saberei mesmo algo? Serei alguém?

“Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
(...) Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso ser tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!”
Álvaro de Campos

Regressei ao “meu” livro e lembrei-me de um dos gestos preferidos do “Carvalho, o detective de Montalbán”... queimar alguns livros.

Aqui faz falta uma lareira!"

domingo, 15 de julho de 2007

Caminhos...

sexta-feira, 13 de julho de 2007

História a duas mãos...

E foi numa noite de Verão como esta, cheguei a casa como hoje, exausta, transpirada e esfomeada, engoli qualquer coisa e conectei-me ao mundo para não ouvir o silêncio.
Ele deu o mote, daquele seu jeito pouco convencional de ser, qual D. Sebastião, real, mas sempre numa névoa envolto. Aceitei o desafio e dedilhei freneticamente impressões sentidas.
Hoje, como naquele dia, lá para trás, em que o acaso nos cruzou, penso nos vários conceitos de amizade...
Do meu baú, em tua honra e destes últimos anos, sai esta história a duas mãos escrita, como se te conhecesse, como se fosse tua amiga e como se gostasse de ti...

O marquês de Brah envergara a armadura sem sentir um peso no coração. “Estranho”, reflectiu, num resquício de consciência pesada, “devia ver o sangue ao espirrar...”
Montou no cavalo que fora do seu pai e de seu avô e partiu, à frente da horda desonesta, para mais uma cruzada campestre. “À carga, meus bravos cavaleiros”, bradava de cinco em cinco riachos atravessados, na floresta enevoada e lenta.
“À carga de porrada responderemos com a nomeação democrática de um novo bispo que nos benza”.
Era uma atitude política! Verdadeiro estado moderno. Afinal estávamos em 1040... “viva purtucale!!!” gritou uma vez mais, feliz de se ter inventado tão bravo; e continuou, “heróis do mar nobre povo nação valente e imortal lalalala” .
Portugal! Portugal!
À sua frente um grupo gritava desafinado, “levantai hoje de novo...” esfregou os olhos, tonto, tentou focar, a sua mão ensanguentada deu sinal de vida. À sua volta buzinas, panos verdes e vermelhos, caras pintalgadas, manchas laranjas, cânticos estranhos, vidros partidos, homens de negro empunhando bastões, protegidos por viseiras.
Gosto amargo de boca, garganta seca. Num gesto automático bebericou a sua loira de litro, agora quente e mole. Alguém o ajudou a levantar-se dando-lhe uma palmadinha nas costas: “então rapaz!”
Tentou equilibrar-se, “afinal 1040, 2004, 2104 tanto faz...”. Empunhou a bandeira, seguiu o seu caminho e por mais umas horas esqueceu a sua vida, “... contra os canhões marchar! Marchar!!”.

quinta-feira, 12 de julho de 2007

Registos muito pessoais...

Épocas passadas...

segunda-feira, 9 de julho de 2007

Na casa encarnada/encantada/assombrada...



E já indo alta a noite, reza a história que por lá, há tempos já esquecidos, apareceu um esfervelho que queria vir para ficar sem ser convidado. Logo lhe levantaram uma rémula. Irritado peguinhou o objecto que lhe fazia frente, mas com tanta sorte ou tão pouca este estava tão tabido que logo por azar o fez cair e dar uma tapetádia que lhe abriu uma esmechada e foi tal a gravidade que passadas umas horas estava todo pavonaço. E depois foi o talião de dali para a frente só se alimentar de macassáres cozidos ou com eles untar o seu cabelo. E perante tal castigo não teve outro remédio senão perspirar até à eternidade em noites de lua cheia.
Que o diga o Paulo da tasca do Joel que quando ouve falar na Casa Encarnada até arregala os olhos e mostra os dentes tortos, não vá o ilustre esfervelho assombrar-lhe a v
ida.

domingo, 8 de julho de 2007

À Tua...

HOJE é um dia diferente!
HOJE lembrei-me de uma música da Marisa Monte, musa que sempre me enche a alma pela sua musicalidade, cor, sensualidade e beleza das palavras.
No nosso Coliseu cantou pela primeira vez uma canção composta, uns dias antes, para aliviar as saudades de um amigo/irmão durante a sua longa digressão pela Europa. Cada vez que a toca ela sente-o presente.
Foi um momento único que me fez molhar os olhos e emocionou por dentro, desencadeando em mim uma onda de saudade profunda: pelas pessoas que fizeram parte da minha vida e nunca mais vou ver; pelas que não vejo porque estão distantes; pelas pessoas com as quais nunca mais me cruzei.
HOJE acordei de manhã e fiz-me à estrada, de Peniche à minha Lisboa pensei e senti muito. Abri a porta de casa e enrolada no meu sofá branco ouvi e senti de novo essa canção que cura saudades. Ouvi e senti uma, duas, três... uma e outra vez para te sentir mais perto.
HOJE penso especialmente numa pessoa muito presente dentro de mim que guardo num lugar muito quentinho. Dona de uma sensibilidade infinita, cheia de Amor, contentora, carinhosa, inteligente, amiga e com uma mão da qual me quero lembrar o resto da minha vida, mesmo que nunca mais possa encontrar a minha. Um porto de abrigo tranquilo, delicado, onde ri e chorei vezes sem conta.
HOJE estou com sintomas de saudades!
Neste dia diferente, queria estar fisicamente com... sei que não é possível... não é o espaço e o tempo... por isso canto esta canção para que te sinta em mim.
HOJE pensei em ti...
HOJE estive contigo...
E... com este meu AMOR.
"Eu só quero que você saiba
Que estou pensando em você
Agora e sempre mais
Eu só quero que você ouça
A canção que eu fiz pra dizer
Que eu te adoro cada vez mais
E que eu te quero sempre em paz
Estou com sintomas de saudades
Estou pensando em você
Como eu te quero tanto bem
Aonde for não quero dor
Eu tomo conta de você
Te quero livre também
Como o tempo vai e o vento vem
Eu só quero que você caiba
No meu colo porque
Eu te adoro cada vez mais
Eu só quero que você siga
Para onde quiser
Que eu não vou ficar muito atrás"
(Marisa Monte)

domingo, 1 de julho de 2007

Urgentemente...


É urgente o amor,
É urgente um barco no mar.

É urgente destruir certas palavras
ódio, solidão e crueldade,
alguns lamentos,
muitas espadas.

É urgente inventar alegria,
multiplicar os beijos, as searas,
é urgente descobrir rosas e rios
e manhãs claras.

Cai o silêncio nos ombros,
e a luz impura até doer.
É urgente o amor,
É urgente permanecer.

(Eugénio de Andrade)